segunda-feira, 2 de junho de 2014

O papel das cisternas no fortalecimento da agricultura familiar - uma oportunidade histórica no Semiárido brasileiro

Rodrigo de Castro - comunicador da ASA
30/05/2014

A cisterna se transformou em um símbolo do Semiárido brasileiro. Não um daqueles símbolos tradicionais, manjados e perversos que vemos na tela da TV e páginas dos jornais e revistas de grande circulação. Não estamos falando de galhos retorcidos e carcaças de animais, tampouco solo rachado. Estamos falando de um símbolo positivo, que significa estruturação, adaptação a uma realidade a qual, se possui as suas mazelas, ao mesmo tempo exibe muitas riquezas e potencialidades.

A cisterna é uma tecnologia social, nascida de uma ideia muito simples: se a chuva cai somente em alguns meses de forma concentrada, porque não guardá-la para usar quando ela não vem? A beleza da tecnologia social é ser acessível a qualquer pessoa ou organização que queira utilizá-la, e não ter que pagar nada para ninguém. Feita de placas de cimento, é muito resistente e facílima de construir, podendo ser construída por qualquer pessoa apenas com orientações básicas.


Assim, a ideia que nasceu da cabeça de seu Nel, lá nos anos 1950, foi se desenvolvendo e se espalhando ao longo dos anos. E hoje, mais de seis décadas depois, se transformou em política pública, graças à luta da sociedade civil organizada, principalmente através das organizações da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA).

Graças à atuação da ASA, buscando convencer o poder público da importância de garantir um meio de prover água de consumo humano a quem não tem, a cisterna ganhou envergadura, povoando as pequenas propriedades do Semiárido brasileiro aos milhares (pouco mais de 500 mil construídas até 2013, somente pela ASA), e se transformou em lei. Em outras palavras, o governo passou a ter a obrigação de investir na construção de cisternas para a população. 

A beleza maior da cisterna não é apenas ter um meio de guardar água da chuva. O significado maior dela é o protagonismo que ela proporciona aos agricultores e agricultoras, uma vez que seu processo de implementação é participativo desde o primeiro instante. Da mobilização e construção, passando pelas capacitações, que valoriza e fortalece o saber das comunidades, a cisterna é um verdadeiro instrumento de fortalecimento da agricultura familiar. O alicerce, que garante a necessidade mais básica de todo ser humano, a água para matar a sede. 

Mas se engana quem pensa que a cisterna é uma ação isolada. Garantir a água de beber é vital, porém é só o primeiro passo. Toda família agricultora precisa de água para produzir na sua terra, por isso a lógica de guardar, originada pela cisterna se desdobrou em outras tecnologias sociais, como as cisterna-calçadão e cisterna-enxurrada, os tanques de pedra, os 
barreiros trincheira e barragens subterrâneas.

O resultado disso é que, em pouco mais de uma década de construção de cisternas em larga escala, estima-se que mais de dois milhões de pessoas em todo o semiárido passaram a ter acesso à água de consumo, do lado de casa, sem pagar nada a ninguém. O impacto social desse dado é difícil de expressar em palavras. Como explicar em poucas linhas o que significa um ser humano conquistar o direito de ter acesso à água de qualidade? Da mesma forma, um número cada vez maior de famílias vem conquistando meios para sustentar sua produção agrícola, o que significa melhoria na qualidade da alimentação e incremento de renda. 

Fica claro que uma das chaves para promover desenvolvimento no semiárido é a água. Se agirmos na perspectiva de guardar água para usar nos meses de estiagem, é plenamente possível conquistar qualidade de vida no sertão, bastando para isso se adaptar as condições climáticas. Podemos dizer, assim, que a cisterna é um alicerce para o desenvolvimento da agricultura familiar, assim como um pilar para a política de convivência com o Semiárido.


Da janela, se avista a cisterna branca ao lado da casa 
| Foto: João Roberto Ripper / Arquivo Asacom          A conjuntura atual é positiva. A cisterna, desde 2013, é lei. É política pública, prevista no orçamento da União. A Organização das Nações Unidas (ONU) elegeu 2014 como o Ano Internacional da Agricultura Familiar, o primeiro ano internacional da ONU promovido pela sociedade civil. Ou seja, a agricultura familiar, constituída pelos pequenos agricultores e agricultoras, a base que verdadeiramente alimenta a população, nunca esteve em tamanha evidência. Essa é uma oportunidade histórica para a sociedade civil, que somos todos nós, avançar na construção de uma realidade mais digna para o Semiárido e o campesinato brasileiro. A luta é antiga, e já assistimos a avanços e retrocessos.

A cisterna é um instrumento de libertação. Que ela seja também um alicerce, um ponto de partida para que cada família, que já a conquistou, possa construir uma vida mais digna, e viver bem na terra onde reside.

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